Anoitece e Frida vem reclamar meu ser. Me invade sem respeito nem cuidado e me revira por dentro. São estes os dias que me empresto a ela.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Mudança



"...Me explica;
Me diz onde vim parar,
Pois quem sempre esteve aqui;
Já não está.
Eu tento imaginar outros planos,
que o tempo lento parece desfocar..."

Arrancar as fotos da parede era de tudo a tarefa mais dolorosa. Talvez ela pudesse deixá-las ali mais um tempo. Mas sabia que não devia. Ou tinha realmente dúvidas. Não sabia de nada, mas se lembrava do que lhe recomendavam fazer. Nessas horas de mudança, todos sugerem algo, porque o que se quer não é o ideal. Ela nem tinha certeza se tudo que quis um dia era o ideal. Talvez tivesse errado sempre, talvez acertado, talvez sido feliz, ou não. Tempo de incertezas batendo na porta, uma insegurança que se materializava debaixo dos olhos vermelhos. 'Alergia irritante deixando meus olhos e o nariz assim. Alergia, é só alergia.'

Os CDs embalados nas caixas, filmes e músicas, as cartas. Roupas de cheiro bom que ia se perdendo no meio da bagunça. Ou não sentia mais cheiro porque são as roupas que ela costumava cheirar pra dormir melhor. As roupas perdem o cheiro próprio quando se dorme com elas. O plano era sempre trocar as peças pra que o cheiro sempre a fizesse dormir. 'Preciso de um plano novo.' Quem sabe alguns comprimidos esquecidos na gaveta? Na hora da felicidade, sempre se esquecia dos amigos comprimidos.

Colocou na caixinha uma blusa xadrez, alguns pedaços de panos velhos. Um nariz vermelho de plástico e queria colocar também a vermelhidão do seu nariz doente. Queria colocar a lembrança, a parte da cabeça que a impedia de pegar no sono. Jogar lá todo e qualquer sentimento, os ruins e os bons. E mandar eles todos de volta. Devolver como se devolve um CD arranhado a um amigo displicente. Ficar fazia e limpa de todo. Sem marcas. E depois tomaria de volta as parcelas felizes, os risos, a festa, a luz. E ficaria bem. E bem rápido. Pensou que ela já tinha escrito tudo o que ela sentira da outra vez. Ele sabia como ela estava agora. Ela se revelando de novo, em páginas que ela mesmo entregara em crédito à sinceridade. Era sempre tão sincera e agora isso a traia. 'Que vergonha!'

'Mudanças são sempre complicadas assim mesmo. Eu sei.' Pensa em quantos diversos outros dias vai ter de sentir novamente. Desânimo. Vontade de deitar. Dormir. Ou mudar de apartamento, de cidade, de país. 'Mudar de país me parece tão interessante. Sempre quis mudar bruscamente de ares.' Se lembra da viagem programada. E em todos os planos ela não está sozinha. Não quer mais viajar, nem mudar de país, nem Alemanha nem Rússia, nem filhos, nem casa vermelha, nem filmes, nem rock nem roll. Até Marx agora perdeu a importância. Só ela é importante. E o que ela quer fazer agora, sendo certo ou errado. Ela quer se deitar, deixar a mudança pra depois. Ou nem mudar coisa nenhuma. Ficar assim. Deitada com o nariz doente.

Frida

Um comentário:

  1. 'E em todos os planos ela não está sozinha. Não quer mais viajar, nem mudar de país, nem Alemanha nem Rússia, nem filhos, nem casa vermelha, nem filmes, nem rock nem roll.' Peguei essa parte pra mim. Faz todo sentido.

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