Anoitece e Frida vem reclamar meu ser. Me invade sem respeito nem cuidado e me revira por dentro. São estes os dias que me empresto a ela.

sábado, 10 de outubro de 2009

Amanhã




"...How the hell did we wind up like this?
Why weren't we able, to see the signs that we missed
And try turn the tables
Someday, somehow
I'm gonna make it all right but not right now
I know you're wondering when..."


A hora em que volta a consciência. A pior de todas as horas, a mais cruel. Acordar é sempre o mais difícil. Ou se sentir acordada quando a vontade é dormir. À noite a vida parecia mais fria, mas dormir era um alívio por tal falta da verdade. A verdade que se quer esquecer. Acordar era ter tudo ali, bem vivo, respirando mais que ela. Respirar também era difícil naquele dia tão frio de verão. E sentia o sol no rosto atravessando a janela no quarto esquentando tudo que fosse superficial. E lá dentro: o frio.

Ainda de olhos fechados, vem a consciência de como a vida parece mudada de repente. Ania abriu os olhos e se enxergou tão viva que os fechou bem rápido de tanta dor. Acordar, respirar, se sentir viva. E a dor. Ela que vem batendo na porta das pálpebras cobrando a dívida que Ania não quer pagar. ‘Vamos, abra os olhos, enfrente a vida’. A dívida de abrir os olhos e suportar as imagens que eles irão ver como num filme antigo. Procura pela raiva, sua protetora. Ela é menor do que a raiva de ontem que a cada dia a abandona mais. A raiva a largando a sós com a própria dor. Está agora suplicando pra que esse sentimento sublime de desafeto não a deixe sozinha. Quer prolongá-lo até quando puder. Quer deixar a respiração mais fácil e necessita da indignação. Mesmo se não há mais motivos para tê-la. Mesmo se a raiva insiste em ir embora por falta de razão pra existir.

Agora a lembrança do que ela já fora e o que parece ser deitada na cama. A fortaleza perdida entre os lençóis. Fragmentos da cólera de outrora não encontrados debaixo do travesseiro. Como uma noite de sonhos pode dissipar um alicerce? Não se sente sozinha. Não há vazio. O que toma conta do estômago é um desengano. Seu engano não era com ninguém, não tinha alvo físico. Era a vida que a enganava. Ora se mostrava fácil, ora difícil demais. Não conseguia acompanhar essas mudanças bruscas de realidade. Ora era amada, ora não. Era incapaz de acompanhar as mudanças bruscas do amor.

Quis dizer a ele que a raiva não era do que ele costumava ser, a gana era de amor. Era de não conseguir imaginar alguém aceitando a solidão como um caminho. A raiva era da fuga, do medo, da falta de explicação para a distância. Ira daquela comodidade em sofrer só, para afastar um sentimento conjunto. Talvez ele não a amasse mais, mas ela não acreditava nisso. É complicado conhecer quem se ama. Ela não entendia como ele podia pensar assim. Era melhor que não a amasse ou procurasse por outra pessoa. Mas desistir do amor era tão triste e ela nem suportava aceitar esse destino para aquele alguém que ela amava tão puramente. Quis dizer isso tudo a ele, que não entendia e que era muito triste, mas não disse. Ficou calada, pediu pra ele ir embora, sentiu a cólera bem mais forte que nunca. Sentiu-a pulsando em todo corpo vermelho de sangue revirado. A revolta bombeando o sangue.

Quis muito sacudir aquele corpo conformado na sua frente e pedir reação. Suplicar que suportasse e não desistisse de sentir, que não adiantava ignorar o sentimento. Isso não fazia sentido algum pra ela que era tão passional. Ignorar o sentimento parecia tão fundo, tão vazio. E depois lhe ocorreu que um sentimento que podia ser ignorado era um sentimento qualquer, um sentimento sem importância. ‘O meu amor não é assim. Meu amor não pode ser simplesmente ignorado como se afasta um pensamento ruim. É um amor muito mais forte que isso, um amor bem mais forte que o seu. ’ Queria dizer, mas não disse. Saiu correndo paradoxalmente pra fugir daquela mesquinhez que ameaçava o amor que ela defendia tanto. E o surto de raiva a estremecendo compulsivamente. Palavras tão eficazes pra abrir uma ferida e encerrar uma discussão.

Ele lá sem compreender aquele súbito descontrole: um escândalo. O que não devia o assustar, pois ele bem conhecia sua intensidade em sentir. Mas a prática nunca é como se espera. Ele nunca tinha sido alvo de tanta ira, não tão expostamente como naqueles extensos segundos. O ódio nu. E não entendeu que na verdade o alvo não era ele, e sim aquelas palavras que subestimavam um amor tão declarado. O alvo era aquela submissão ao imutável, que não aceitava o desafio pra ser feliz. A raiva era disso tudo que ela presenciara naquele dia frio de verão. Nisso tudo que ela pensava deitada olhando fixamente pro teto do quarto, cansada de tentar lutar contra a dor. Cansada de fechar os olhos.

Talvez um dia ele compreendesse que esse pedido era impossível. Fingir não estava no seu intimo. Não era alguém que fingia. Até então, era isso que ela pensava que ele amava. E agora ele pedindo a ela pra suportar. Talvez um dia ele entendesse a incapacidade de Ania em ser cruel consigo mesma. Ela não aceitava provocar o mal a ela mesma como ele fazia a si mesmo. Ela não queria ignorar nada. Não queria fingir uma felicidade inexistente. Não queria que sua vida ficasse simplesmente um tudo bem mesquinho. Ania queria ser feliz outra vez. Sem mentiras. De verdade.

Frida

Nenhum comentário:

Postar um comentário