Anoitece e Frida vem reclamar meu ser. Me invade sem respeito nem cuidado e me revira por dentro. São estes os dias que me empresto a ela.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sou eu



Eu sou a pessoa que borra as unhas de esmalte vermelho, as mãos e os pés, mas nunca limpa os excessos.

Sou alguém que compra lutas políticas, e que realmente se dedica a elas como se pudessem fazer alguma diferença.

Talvez com um pouco de dificuldade pra dormir e a paixão declarada em andar de madrugada com uma caneca de café na mão.

Sou um alguém que cansa facilmente as pessoas.

E que se revolta com defuntos históricos ou personagens de seriados nacionais.

Tenho mania de interpretar outras vidas em frente ao espelho e conversar sozinha para disfarçar a solidão.

Monto diálogos românticos em inglês enquanto ando pelas ruas. Isso faz com que os caminhos pareçam mais curtos.

Sou a única pessoa que conheço que imita coelhos com a boca quando está nervosa.

A única que tem como peça preferida do guarda-roupa, uma calça de pijamas usada cheia de bolinhas azuis. E às vezes quando meu orgulho ultrapassa os limites, eu gosto de passear pelo bairro vestida assim.

Sou alguém muito apegada ao passado, tenho uma notável resistência pra reconhecer que sou desse século mesmo, e às vezes sonho que moro num antiquário.

Sinto vontades repentinas de dançar sem regras, então eu danço pela casa de uma maneira que parece demonstrar o que escondo por dentro.

Aprecio músicas clássicas e fantasio que toco piano divinamente enquanto vou dedilhando o alfabeto do meu teclado.

Sou aquela que lê o tempo todo nos intervalos das aulas, mesmo quando o livro não é interessante.

As vezes acho que sou ninguém.

Isso é tudo que eu sei de mim.
Essa é minha forma de ser especial.

Frida

sábado, 16 de janeiro de 2010

Beatriz



'...Me leve para sempre Beatriz,
Me ensina a não andar com os pés no chão...'


Um dia conheci uma garota. Quando eu já não tinha ninguém, e não tinha presentes, nem alegrias, nem sabia quem era eu. Conheci meio que por conhecer, numa noite que lembro sem mesmo fechar os meus olhos. Num tempo em que nada parecia muito interessante, ela apareceu.

Aconteceu no meio de muita gente, e como um raio de luz no escuro, ela puxou toda a precária atenção que eu tinha reunido dentro de mim (sempre fui um pouco distraída). Num segundo, ela desapareceu com tudo que eu tinha a minha volta e fez do meu corpo uma estátua comum, de cera branca, daquelas que não tem graça nem cor. Eu até podia ver na íris dela, bem de longe, o mundo novo que me esperava: as certezas reconstruídas, os momentos fascinantes, o que eu ainda ia aprender. Vi o mundo sem mesmo conhecê-la, eu que ainda não podia ver, encontrei no escuro a menina dos olhos dela. E nesse instante percebi que não podia perdê-la, não suportaria ter um mundo por segundos e deixá-lo partir sem me tocar de algum jeito.

Ela parecia sempre distante, e por mais que os dias passavam e quanto mais me aproximava dela, maior ela se tornava. Explicou-me sobre música, me deu aulas de inglês, me ensinou a rir de coisas simples e chorar por elas também. Entendia meus oceanos sem motivo e um dia me contou que também chorava sem razão. Éramos o desespero, uma da outra, o consolo encontrado em não saber o que dizer, só entender o que sentir. E os planos que fazíamos, o quanto nós cantávamos, os nossos amores juvenis. Tantas foram as vezes que dividimos cores, e nos demos conselhos que não seriam seguidos, dividimos tristezas também, e felicidade.

A Beatriz me contava sobre seu dia corrido, sobre uma infância sem dança, sobre desenhos nas paredes e amigos distantes. Ouvia minhas histórias, minhas revoltas, me abraçava em tempos escuros, tirava fotografias. Éramos admiradoras de quase as mesmas pessoas, amor. Existiam muitos problemas também, escolhas a serem feitas, perdas dolorosas, mas eu sempre me orgulhei da coragem que ela tinha de enfrentar o que viesse. Não era uma coragem armada, daquelas que a pessoa finge que não sente. Ela sentia, e mostrava, e era tão maior por isso. Eu sempre apoiei também, como ela me apoiou em tantos momentos. Em muitos dias, tropeçamos, com freqüência eu lutava por laços que não era válido lutar. Ela também me ensinou muito sobre a luta. Ensinou como se recupera um orgulho perdido e me ajudou a ter o meu de volta.

Vários filmes ela me indicou e vários assistimos juntas. Em todos os encontros, estivemos presentes, se não juntas, nos juntávamos à saudade. Ah, como eu senti saudades. Como as semanas foram longas, e vazias sem que eu pudesse me preencher com o sorriso dela. Havia tardes de livros e achocolatados, risos, perguntas e respostas. Beatriz tinha um jeito próprio de falar, algo que reforçava alguns sons principais, talvez a língua meio presa, não totalmente, não consigo explicar. Tinha um trejeito com a mão em que dobrava os pulsos, um charme que ela dela e que eu nunca a contei que tinha. Era sempre muito preocupada com algo e tinha milhões de pequeninas nuances importantes, era detalhista. Um pouco de ciúme talvez, medo de perder o que nos tínhamos, como se fosse possível perder. Era inundada de nostalgia, assim como eu, e assim eu sempre tinha alguém com quem temer a distância do futuro. Eu me sentia um pouco criança perto dela, não infantil, é que ela me trazia algo que eu devo ter perdido quando menina, ou que talvez nunca cheguei a conhecer.

Se eu tivesse que escrever um livro sobre uma mulher, era sobre ela que eu escreveria: a mulher que eu a via se transformar. Em nenhum momento perdi o interesse sobre uma mente tão rica de percepções e sentimentos. E a transparência que eu via dentro dos olhos dela, e do sorriso e das palavras, era a mesma transparência que eu conhecia quando me olhava no espelho. Ela não sabia fingir, e juntas não mentíamos pro mundo sedento de julgamentos.

Certo dia Beatriz veio me perguntar receosa se um dia nos esqueceríamos uma da outra. Esse talvez seja o motivo dessas letras. Quero provar a minha amiga que mesmo depois de todos esses anos, eu nunca a esqueci. Nunca pude apagar os momentos mais lindos da minha juventude, em quase todos, eu a vejo sorrindo. Talvez eu até tenha desejado adormecer o amor pra que doesse menos lembrar, para que a nostalgia não me deixasse cada vez mais velha. Naquele dia ela perguntou e eu senti um tanto de medo no fundo da gente. Então me lembrei de uma verdade que espero que ela tenha descoberto em todo esse tempo. Minha amiga, assim como eu, morava num planeta distante de número B612. E quem morou comigo algum dia nesse planeta, não consegue ir embora jamais.

- Oi, qual é o tom desse vermelho?
- É magma.
- Nossa, é lindo.

Frida